Impossível falar do meu irmão Vladimir, sem fazer relação com meu pai. Eles se pareciam muito, e foram minhas primeiras referências no mundo masculino. Eles eram brilhantes, marcantes e tinham uma forte presença, nunca passavam despercebidos. Fiz essas comparações nos posts anteriores, e farei mais uma vez nesse, que é o sexto post dessa série.
Quando nosso pai morreu, (contei no post anterior), levamos muito pouco tempo para arrumar e nos desfazer de suas coisas pessoais. Descobrimos o que já sabíamos, meu pai era desapegado, não acumulava coisas... Arrumar o armário dele foi uma emoção grande... ele tinha algumas poucas bermudas, pouquíssimas calças compridas, e bem antigas, pois desde que ele se aposentara, ele se recusava a vesti-las, sapatos fechados, um ou dois, tênis e alpercatas. Ele tinha muitas camisetas, nada caro ou de marca, muito pelo contrário, a maioria eram com fotos dos netos, dos cachorros, ou de viagens lembranças de viagens (a maioria havia ganho de presente), camisetas com coisas engraçadas escritas (vesti-las era sua forma de provocar as pessoas), e camisas dos times de futebol, não me lembro se tinha alguma oficial, eram na sua imensa maioria coisa barata. Bonés, que também que havia ganho de presente de viagens.
O fato é, não levamos muitas horas para doar tudo que ele tinha para os funcionários do prédio que ele morava e para escolhermos uma camiseta que tivesse valor afetivo. Eu mesma peguei uma que ele havia comprado quando nos visitou em Houston, que estava escrito: "Mi casa es tu casa, pero mi cerveja non."
Um dia após a cerimônia de cremação de Vladimir, eu e minha irmã Tatiana, fomos desmontar o apartamento dele. Tínhamos pressa, não moramos em SP, tínhamos que adiantar tudo e voltar pra casa. Não sabíamos o que seria, como faríamos, o que encontraríamos.
Encontramos livros, livros e mais livros. Vladimir desde sempre amava ler. Ela sempre gastou seu dinheiro com livros. Desde que ele recebeu seu primeiro salário como estagiário, que ele gastava comprando livros. Vlad tinha um sofá e uma poltrona, que deviam ter uns 20 anos, muitas roupas que doamos para instituição de caridade, um computador que não era nada demais, um aparelho de som bem simples, LPs e CDS, um carro velho de 2002, e livros, muitos livros.
Impressionante que ele não tenha trocado de carro, que ele não tenha comprado coisas que lhe oferecesse mais conforto material. Ele comprava livros, o tesouro dele eram os livros.
Em uma estante, encontramos carinhosamente expostos, os seus troféus: Placas e mais placas de homenagem de várias turmas que ele paraninfou, objetos que percebemos ser presentes dos alunos, ao lado dos seus muitos livros, e isso foi um conforto enorme para mim e minha irmã. Vlad não era só, ele tinha uma família enorme, ele tinha os alunos, os ex-alunos, os amigos e os livros.
O carinho com que ele guardava as homenagens dos alunos, devia ser uma prova de reciprocidade do que ele havia recebido por todos esses anos, muito carinho também. Vlad foi amado e admirado. Ele com certeza tinha restrições com relação a intimidade, mas ele era querido por ser uma pessoa brilhante, bem humorada, irreverente, inteligente, sarcástico e por amar o que fazia.
Ele amava ser professor e isso ele aprendeu com nossa mãe, que foi professora a vida inteira e amava o seu trabalho mais que qualquer coisa na vida. Algumas vezes tentei sugerir que ele parasse de trabalhar e fosse para Salvador se tratar melhor, e ele rejeitou qualquer continuação de conversa sobre esse tema. Ele trabalhou doente, trabalhou enquanto pôde, trabalhou até morrer. Encontramos dois pacotes de provas dos alunos sobre a mesa. Ele trabalhara até o fim, literalmente.
Limpamos o apartamento, doamos os livros de economia, as homenagens dos alunos para a FACCAMP, onde ele lecionou nos últimos e muitos anos.
O vizinho ao lado do seu apartamento, abriu a porta para nos atender, e sua cadela, Abigail e seu gato, Sancho Pança, entraram correndo no apartamento de Vlad para ver o que estava acontecendo, e procurar o amigo. Vagaram desolados com o esvaziamento daquele lugar que parece que eles conheciam bem. A síndica do prédio, ainda chocada, pois nem sabia que ele estava doente, fazia elogios ao fato de que ele não dava problemas, o que acho que era efeito da santificação que a morte produz, pois acho que ele deve ter dado muito trabalho aos vizinhos.
Os porteiros e o pessoal da limpeza chocados e desolados, esforçavam-se para nos ajudar. A sua faxineira falava sobre o homem bom que ele era.
O fato é que a morte é para todos, mas a vida é para os que escolhem viver. Vlad escolheu viver a vida dele do jeito dele, e viveu. Foi bem sucedido no que investiu energia, poderia ter vivido muito mais, e ensinado a muito mais alunos, lido muito mais livros e nos presenteado com seus posts no facebook por muito mais tempo. Ninguém merece morrer aos 53 anos, mas ninguém pode negar que ele viveu intensamente a vida que escolheu, e que viveu sem dar satisfação a ninguém das suas escolhas (isso parece uma sonho).
Meu filho mais velho ficou com LPs e alguns livros, meu sobrinho ficou com um casaco do Botafogo, trouxe alguns livros para meu filho caçula que mora aqui nos EUA, além de blusas do Bota. Minha mente fotografou cada canto daquele lugar que foi sua caverna, e levarei comigo uma parte da história dele, que foi algo que ainda não sei definir bem, mas que me compõe como pessoa, pois faz parte da minha vida e da minha história.
O próximo post será provavelmente o último, e farei um álbum com as fotografias que ele tinha de amigos a alunos para deixar registrado meu respeito e agradecimento aos amigos e alunos, que foram a família que ele escolheu.