sexta-feira, 10 de junho de 2011

"A LUTA CONTINUA COMPANHEIRO!"

Uma vez minha mãe nos colocou eu e meu irmão de castigo. Sabíamos que já estava perto da hora do meu pai voltar do trabalho...ficamos quietos no castigo pra que minha mãe nos esquecesse lá. Meu pai chegou, nos vendo lá com cara exageradamente tristes, perguntou -"O que voces estão fazendo aí? - Estamos de castigo. -Saiam do castigo agora! Onde já se viu um filho meu ficar de castigo? Sabíamos que ouviríamos isso. Gozo geral. Meu pai sempre nos tirava no castigo.

Outra vez minha mãe estava tentando nos dar uma chinelada, meu pai viu e perguntou: -Jacira, voce não acha que eu e voce já apanhamos por nossos filhos e netos? Eles tinham apanhado muito em suas vidas. Ele nunca nos bateu e nem deixava minha mãe fazer isso. Não acreditava em repressões ou castigos. Não punia, só incentivava e vivia como exemplo.

avô apaixonado

Quando éramos pequenos, ele colocava todas as crianças da vizinhança no carro e levava para o clube, para tomar sorvete, para onde ele fosse com os filhos, sempre cabia mais crianças. Confesso que sentia até um certo ciúme, pois meu pai era de todos. Ele tinha tantos "sobrinhos" (nossos amigos) que parecia que ele não era meu, que era de todos. Ele era assim. Ele era de todos.

Ele foi preso em 64, porque era do PCB e líder sindical, isso era como uma marca na minha vida. Adorava saber que meu pai era diferente. Embora a nossa vida tenha ficado muito difícil e só tenha melhorado depois da anistia, eu tinha muito orgulho disso. Achava incrível ter um pai idealista.

Meus filhos vestem roupas pretas, gostam de rock pesado, e usavam cabelos longos, ele nunca estranhava  nada, nem achava nada que os meninos fizessem, feio. No máximo perguntava o que era aquilo, o que eram aquelas roupas, mas tinha um respeito absoluto por suas escolhas. Quando alguém comentava sobre o cabelo longo dos netos, ele dizia como uma provocação: - "...é verdade, eles estão igual a Jesus." Com isso, calava a todos os preconceituosos. Certa vez Caio pintou o cabelo de azul. Minha mãe perguntou se ele já havia visto, com um tom meio assustado, ele respondeu: "Qual o problema? Voce pinta o cabelo de amarelo, porque o menino não pode pintar de azul?" Ele se divertia até com a tatuagem que o neto fez. Ele não entendia o que significava, mas se o neto estava feliz, ele também estava.

Esse era o meu pai. Se estávamos felizes, ele também estava. Sem nenhum questionamento e com apoio incondicional.  Acreditem, NUNCA recebi um olhar que viesse dele na minha direção com algum tipo de desaprovação. Ele me aprovava. Ele reconhecia e enaltecia aquilo que via em mim e nos filhos e netos, incondicionalmente. Quando ele não gostava de algo, silenciava. Esse silencio era muito mais educativo que broncas que nunca existiram. Era complicado para mim decepcionar esse pai que me aprovava incondicionalmente.

Ele era uma pessoa que pensava no coletivo e nos ensinou isso com exemplos. No aniversário de 2 anos do primeiro neto, ele comprou um coelho (de verdade) e deu para Rafael de presente. A síndica do condomínio que eles moram, reclamou e ameaçou multá-lo por que era proibido coelhos. Rafael ficou triste com a possibilidade de perder seu coelho. No dia da festa de aniversário, ele comprou 40 coelhos e deu de presente para 40 crianças do condomínio, com um cartão: "Coelhos UNIDOS jamais serão vencidos". Ele podia ter ensinado Rafael a lidar com as frustrações e aceitar os limites impostos pelas regras, mas ele preferiu nos ensinar que UNIDOS temos uma causa coletiva. Unidos somos fortes. Ele sempre nos ensinou que as regras devem ser seguidas se são justas, se não são, que deveríamos lutar para mudá-las, e que a melhor forma de luta é a lutar ao lado de companheiros.

Nunca achei que tivesse que me "recolher" diante de alguma situação de repressão ou injustiça, tenho geneticamente um elemento paterno que diz que devo transformar minhas dores em Causas. Que devo brigar por elas, que devo aglutinar pessoas, que devo encontrar meus semelhantes. Meu pai tinha o poder de ver uma "causa a ser defendida" em muitas coisas que as pessoas simplesmente desistiriam ou "engoliriam como sapos".

Ele tinha uma ironia fina...uma inteligência aguçada, uma capacidade de sempre estar focado naquilo que importa, mesmo que fosse importante apenas para ele, ele conseguia mobilizar outras pessoas na sua luta. Lindo isso. Era um aglutinador, mas não tinha a menor preocupação em agradar, ou nenhum medo em desagradar, ele simplesmente vivia e dava conta dos desagrados sem se sentir vítima de nada. Sem que sua auto-confiança fosse abalada. Nunca conheci alguém mais confiante e destemido que ele. 

Ele me ensinou a "sonhar". Ele acreditava que uma vida sem sonhos não tinha sabor nenhum. Mesmo sem dinheiro, na nossa infância, ele nos levava pra tomar sorvete, passear no Farol da Barra. Era pra isso que o dinheiro (pouco) servia. Não era para acumular. Ele e minha mãe são muito diferentes nisso. Minha mãe comprava algo e dizia que tínhamos que guardar pra usar no dia de festa, meu pai quando comprava, queria que já saíssemos da loja usando. Ele tinha urgência na vida. Tudo era pra hoje, nada era para amanhã. Pensava que a vida era pra ser vivida e não para ser guardada para um dia poder vivê-la. Foi assim que ele viveu. Foi assim que ele morreu. Não economizou energias para viver e por isso, morreu em paz.

Nunca vi ninguém mais generoso que ele. Desde pequena não entendia bem o porque que ele ajudava tantos amigos. As vezes, no meu egoísmo, aquilo era demais pra mim. Ele queria e amava ajudar. Dizia que não precisava de nada, ou que o que ele precisava era muito pouco, e que o resto que ele tinha era pra ajudar mesmo.

Ele morreu aos 77 anos...hoje tem uma semana da sua morte. Ele morreu deitado na rede de uma parada cárdio-respiratória, com meus filhos tentando ajudá-lo..e com o cachorro ao lado. Ele se foi dois dias antes da minha chegada ao Brasil. Quando meu telefone tocou lá nos EUA, eu sabia que meu pai tinha morrido. Eu simplesmente sabia. Consegui chegar para finalizar a cerimônia de cremação. Fiz o discurso de despedida. Falei para muitos amigos dele. Amigos de todas as épocas. Companheiros de luta do partidão e do sindicato.
Falei com todo o amor que sentia e sinto por ele. Com uma gratidão imensa por ter tido um pai que me ensinou a não querer ser comum. Tentei encontrar palavras para que as pessoas que lá estavam percebessem o quão especial era aquele homem que tinha partido para sempre. Um homem que realmente acreditava que podia mudar o rumo das coisas. Todos que lá estavam...se emocionaram...muitos vieram falar comigo e contar histórias dele que eu não conhecia. Vieram me dizer que eu havia conseguido representá-lo muito bem.  Pessoas me diziam que nunca haviam estado em uma cerimônia fúnebre tão linda e emocionante. Alguns me disseram que foi uma aula sobre vida e morte. A vida do meu pai foi uma aula ... ele foi o meu mestre.

Na minha fala de despedida disse que não havia nada de errado no fato do meu pai ter morrido. Tenho muita paz com relação a isso. Ele viveu intensamente e como quis. Nada de errado em morrer tendo criado os filhos e tendo visto os netos adultos. Perfeito. Acho que ele foi feliz e em paz. Eu me sinto em paz também.

Tenho certeza de que no céu que meu pai foi recebido, os cachorros entram, e que ele foi recebido por "Nenêm"e "Bidu", seus cachorros amados que já se foram. Tenho certeza que na hora da sua morte, eles estavam "lá" latindo e lambendo sua mão. Ele amava seus cachorros e era tão amado...

Escolhemos para seu funeral 3 músicas que o representavam: A primeira foi "BRIGE OVER TROUBLED WATER" que ele sempre escutava com emoção profunda, a segunda foi "DISPARADA" com Geraldo Vandré, que eu cresci vendo-o cantar e chorar com essa música, que era um verdadeiro Hino para ele, e pra finalizar... "O HINO DA INTENTONA COMUNISTA" que foi tirado de um LP comprado na URSS por ele mesmo e que por ele teria sido tocado no meu casamento e nos nossos aniversários. Entretanto, para que o seu funeral tivesse  sido absolutamente perfeito, Marx (seu beagle) deveria ter ido, ele detestava ir a lugares que o cachorro não pudesse estar...e deveríamos estar todos com um copo de cerveja na mão, brindando sua VIDA! E honrando sua morte!

Assim como eu, meu pai tinha um "Mantra", que ele falava para todas as pessoas quando se despedia, e que muitas pessoas gritavam sempre que o viam passar na rua ou em qualquer lugar:

"A LUTA CONTINUA COMPANHEIRO!!!"  

Pai....obrigado....muito obrigado...meu amor e gratidão eternos...
Sou uma mãe feliz por saber que meus filhos tiveram o melhor avô do mundo. Um avô emocionado, apaixonado, engraçado, intenso, irreverente...sou feliz por isso.

Pra quem não conhece DISPARADA, prepare o seu coração... Essa música descreve meu pai!


Ludmila Rohr








17 comentários:

  1. Eu tinha certeza que este post não seria diferente. LINDO, LINDO, LINDO!

    Estou chorando, pela despedida do seu PAI e por não ter tido um, pra me despedir.

    Iná

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  2. Esse era o Tio Jair... lindo, querido e amado, principalmente por quem teve o previlegio de partilhar o "tio" com seus filhos, lembro perfeitamente do Farol, da Cubana, do cine Guarany (Tom e Jerry) no domingo, do Roses e do Clube Costa Azul... ele de goleiro, muito divertido, tenho recordações maravilhosas deste ser de luz e amor... tenho certeza que ele esta em perfeita paz e sorrindo de tudo... A gente se ve um dia Tio Jair... até...
    Simone Jamil e família.

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  3. Fiquei tão emocionada com a história do Coelho, que já contei a umas 10 pessoas. Sabe o que e lindo de ver? Num mundo onde não há respeito, onde falta amor, onde vemos filhos matando pais e pais matando filhos, reconhecer um amor como o seu... Há uma semana, você conta lindas historias sobre esse Homem, e nos presenteia com esse amor tão intenso. Tenha certeza que o seu carinho eternizou o SEU Jair, não apenas nos que tiveram a sorte de conhece- lo como em cada um de nos. Linda homenagem. Sinto-me como uma das crianças contempladas com um Coelho.

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  4. Ludmila, muito bacana poder ler essas notas de uma emoção tão vívida, tão intensa dessa experiência de ser filha do Companheiro. Como te disse lá e como escrevi também: "A luta - sempre - continua, companheira!". Beijos, Irena

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  5. Foi realmente muito emocionante a despedida do seu pai, como é bom ter um pai como referencia, eu sei como é, o meu também foi um grande pai, bjs. Nubs

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  6. Ludmila,
    Não sei se foi coincidência, mas sempre que estou no computador, estou ouvindo alguma música. Dessa vez foi Fábio Junior. E quando abri sua postagem, ele cantava "Pai" e antes do final da leitura, eu já não continha as lágrimas. Meu pai se foi com 46 anos, vítima do coração e meus filhos não tiveram avôs (nem materno nem paterno), e os filhos deles não vão ter dois, porque o pai deles também já foi, porisso choro na hora que a música diz "...e brincar de vovô com meu filho".
    Que bom que seus filhos puderam amar e serem amados por esse avô maravilhoso!
    Meus sentimentos a você e sua família!
    Muita paz Sr. Jair! Fique com Deus!

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  7. E quando eu contei pra ele que o nosso "Brito" era derivado de "Berith", oriundo de judeus, ele bradou: "Mas que coisa! Preferia ser parente do companheiro Yasser Arafat!" Lali

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  8. Meus pais tiveram 8 filhos, num dos encontros de final de ano, todos conversando,lembrando das historias da infancia, falando das nossas saudades, meu pai muito emocionado nos falou que ele sentia muita alegria por a gente sentir saudade da casa do Pai, era um sinal de que ele e minha mães tinham sido bons pais!
    Feliz de nós que tivemos bons Pais, sentiremos uma saudade gostosa!!!
    Rita Portela

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  9. Amiga,
    Você nem imagina como a celebração do seu pai mexeu conosco. No meu caso por lembrar das três cirurgias que meu pai passou. No caso de Chan poque a distancia entre ele e o pai hoje é enorme. Nos emocionamos por nós, por você e por Seu Jair, mesmo sem conhece-lo. Como isso é possível? RS Beijo
    Ana Paula Kika

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  10. Hoje eu vi Jair Rodrigues no programa Raul Gil cantando Disparada e só lembrei do Sr. Jair. Ele já está na minha memória, mesmo sem tê-lo conhecido. Como disse aí Ana Paula Kika. Como é possível?
    A única explicação que encontro é que Somos todos Um.

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  11. Essa foi uma das homenagens mais lindas que já vi. Esse texto é simplesmente emocionante. Que bela história de amor, de vida. Novamente, eu desejo muita paz para você e para sua família.

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  12. Eu já perdi meu avô materno. Vovô Dourado era um homem distante, mas que eu amava e admirava profundamente. Tenho orgulho de usar o sobrenome dele, como uma homenagem. Pois tenho certeza que ele está orgulhoso por eu ser aeronauta. Ele era da aeronáutica. O meu avô paterno eu não conheci. Vovô Carlos era delegado de polícia e morreu novo, ainda na casa dos 50 anos. Meu pai conta histórias e me garante que eu seria sua neta preferida, eu acredito que quebraria fácil aquele coração pernambucano durão! Mas o seu Jair foi um avô "bônus" que a vida me deu. O contato com ele, esse tempo todo que passo na casa deles, era de extremo respeito e carinho. Eu chegava e Caio dizia "vá falar com meu avô"... "Oi, seu Jair!" "Oi, minha nora-neta! Já falou com Max?!" Eu não tenho vergonha das lágrimas que correm (as vezes sem o menor controle) quando eu lembro do meu sogro-avô. Só uma saudade estranha, uma tristeza por não ter dado um beijo no rosto dele, que tive vontade de dar ao me despedir pela última vez, mas senti vergonha porque sou uma tola. Eu sinto muito.

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  13. Oi, Querida
    Estou aqui me acabando de chorar, portanto, não vou conseguir escrever muito.
    Obrigada por ter tocado tão profundamente meu coração mais uma vez. Obrigada por dividir seu querido Pai mais uma vez. Não o conheci, mas já o amo.
    Não tenho dúvidas de que ele segue em Paz, numa paz que poucos experimentarão...
    Meu carinho e acolhimento, meu carinho e sentimento.
    Beijo,
    Claudinha

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  14. Lud,

    Estou profundamente emocionada. Meu ♥ no seu ♥, seu ♥ no meu ♥.

    Saudade, gratidão e muita paz.

    Bjs.

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  15. Me emocionei muito lendo isso, que pai maravilhoso vc teve, quem dera se todos nós conseguíssemos nos depespedir de nossos entes amados dessa forma. bjs

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  16. Eu chorei a morte do seu pai. Não conheço você (infelizmente, pois tenho gostado dos textos daqui) e não o conhecia... mas acho que, por isso mesmo, chorei. Senti vontade de tê-lo conhecido.
    E Bridge Over Trouble Water (com Simon & Garfunkel) é também a música do meu pai.

    Um abraço.

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  17. Ludmila,
    Que bonita e emocionante homenagem ao seu querido pai!
    O legado dele fica registrado na beleza das suas palabras e na felicidade estampada na cara dos seus filhos.
    Me sinto honrada de ter sido professora de ginástica aeróbica dele, numa época, há mais de 20 anos, em que homens e "pessoas mais velhas" nao se atreviam a entrar na sala... O seu pai sim!
    Beijos, querida! Que você continue em paz, namaste.
    Anita Macedo

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