segunda-feira, 23 de maio de 2016

O VLAD QUE EU CONHECI (parte um)


Nascido no Rio de Janeiro em 1962, o baiano era carioca. E assim começa uma história cheia de brilho e sombra, do meu irmão. Assim começa a história de Vladimir, filho de Jacira e Jair , primos de primeiro grau, vindos de Manaus e Belém. 

Primeiro filho, mais que desejado e amado. Não foi filho único por muito tempo, porque eu, sua irmã, nasci 1 ano depois em dezembro de 63, quando nossa família já morava em Salvador. 

Nosso pai era membro de Partido Comunista Brasileiro, o extinto PCB, e fundador do maior sindicato dos petroquímicos da Bahia. Tempos difíceis para ser comunista. Em março de 64 acontece o golpe militar, nosso pai foi preso dentro de casa, deixando nossa mãe com um garoto de um pouco mais de um ano, e uma bebê de 3 mêses. Os nomes russos dos filhos  (Vladimir e Ludmila) eram uma prova contra ele, além de livros, panfletos e sua história de sindicalista. Obviamente não tenho lembranças dessa época, mas ela reverberou em toda a nossa vida. Passamos por situação de muito aperto financeiro, minha mãe teve que contar com ajuda de vizinhos, já que nem família eles tinham na Bahia.

Dessa época, apenas sei histórias que nos contaram, mas as lembranças com Vlad são bem presentes. Sempre que penso em mim enquanto criança, lá está Vlad, ao meu lado. Não tenho nenhuma lembrança de um dia sequer da minha infância em que não o sentisse como meu protetor. Ele desde muito pequeno, assumiu o cuidado para comigo. Eu era sua irmã pequena, ele cuidava de mim, e me protegia. Ao contrário dele, sempre muito confiante e extrovertido, eu fui uma criança tímida, e medrosa, tê-lo perto de mim era a única forma de me sentir confiante. 

Íamos a pé para a escola, de mãos dadas. Íamos para a praia sozinhos, de mãos dadas. Ele era meu protetor em tudo. Anos depois, após muita terapia, descubro que vivi com ele o arquétipo de "Joãozinho e Maria", éramos nós dois e a floresta escura. Eu assustada, e ele tentando não estar, porque tinha que me proteger. 

Dormíamos em beliche, ele embaixo, eu em cima. Eu tinha medo de escuro, tinha insônia desde criança, eu chorava sozinha, e ele dizia: "Lu, você está chorando? Não chore, eu estou aqui." Eu passava a noite chamando por ele, e ele dizendo "vai dormir, Lu".

Na escola, ele era o meu protetor. Nada, nem ninguém iria me fazer algum mal, por que eu era a irmã de Vlad. Todos o conheciam e admiravam. Vlad era brilhante. Aquele estudante que todos queriam ser. Ele era suspenso por mal comportamento, e constantemente aprontava alguma arte, mas suas notas eram completamente monótonas, sempre 10. Ser o cara que apronta e ainda tirar 10, era o máximo. 

Ele era popular, conhecido, famoso. Fazíamos natação no mesmo clube, e lá ele também conseguia ser alguém que se destacava. Nunca o achei competitivo, talvez por isso ele não fosse um atleta de ponta, mas era um nadador com estilo, um jogador de futebol e um surfista que sabia se divertir. 

Na Bahia era comum na época, termos a famosa "mãe preta", resquícios da escravidão. Candinha a nossa mãe preta, tinha um filho que morava conosco que se chamava Roque, e que era da idade de Vlad, e os dois juntos aprontavam horrores. Quando os vizinhos vinham reclamar de algo, Candinha batia em Roque, a gente não apanhava, mas Roque sim. Lembro de que eu e Vlad ficávamos na porta do quarto dele, implorando pra que Candinha não batesse nele, Vlad assumia toda a culpa no apronte pra livrar a cara de Roque, chorávamos juntos ouvindo Roque apanhar. 

Vlad sempre foi uma criança brilhante, diferente, forte, corajoso, meu protetor, e protetor de todos. 

Na festa da Primavera da escola, eu era a flor, ele era o jardineiro que me regava. Não conseguia ser par de ninguém nas festas de São João, acho que pela minha timidez, deixavam que ele fosse meu par sempre, apesar dele ser de uma classe acima da minha.

Não tenho uma lembrança sequer ruim dessa época das nossas vidas. Nossas brigas começaram na adolescência, que contarei depois, mas nossa infância, ele é o que existiu de melhor pra mim. Eu realmente me sentia como Mariazinha perdida na floresta e sem chance alguma de sobreviver, sem o meu Joãozinho.

Pra encerrar esse primeiro post sobre minha vida com Vlad, quero contar a mesma história que contei no seu funeral pra que vocês entendam bem como ele era. "Morávamos em um apartamento bem humilde, no andar térreo, que era voltado pra rua. Não era incomum alguém bater na nossa porta pedindo comida ou esmola. Um dia, estávamos eu e ele na cozinha, eu estava esquentando uma sopa para mim, e ele batendo uma vitamina no liquidificador, quando bateram na porta; eu atendi; era um menino de rua pedindo comida; eu disse que não tínhamos nada e fui fechando a porta aborrecida; ele vendo aquilo, me interrompeu e disse: temos sim! e deu o liquidificador inteiro para o menino, que bebeu a vitamina com tanto desespero que escorreu pelo pescoço. Eu, fiquei envergonhada da minha pequenez, Vlad acalmava o menino para que ele conseguisse beber tudo, mas sem necessidade de pressa. Nunca me senti tão mal...a grandeza dele aparecia para os desconhecidos, e eu não conseguia ser nem sombra do que ele era. 

continua....



24 comentários:

  1. chorando aqui. Andrea Prata

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  2. Que lindo, quero acompanhar toda essa história.
    Mestre Vlad,será eternamente um exemplo na minha vida.

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  3. Ah!! Ludmila sonhos existem de verdade,e estamos vivendo um.
    Eu posso dizer que tive muitas conversas com o Vlad, pois o achava seguro e muito carismático.
    Dele eu fui próxima, mesmo morando distante. Muito mais do que com vocês.

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  4. Muito legal você nos presentear com essa iniciativa. Nós, pequenos miseráveis, ficamos órfãos, desse grande mestre e amigo. Conhecer um pouco mais de sua origem, é fantástico pois nos mostra como ele era ainda mais bacana! Obrigado por transmitir isso para nós! A saudade fica, mas as boas lembranças que cada um de nós temos dele me faz sempre sorrir, e isso é muito bom! Seu bem que ele está sendo muito celebrado em muitos barzinhos, restaurantes e afins. Pois, afinal de conta, somos todos "miseráveis" e sempre estamos arrumando desculpas para bebermos! E Assim seguimos a vida, com a certeza de que sempre, em algum canto, alguém estará sempre lembrando do "Baiano" e de seu jeito feliz de ser!
    Celo Alves - Caieiras /SP
    FACCAM ADM 2009-2013

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  5. Que lindo... Que Deus conforte seu coração.

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  6. O coração dele era do tamanho dele, ENORME, pessoa que onde passava deixa sua marca, e sempre sorrindo. Fara MTA falta. Faccamp ADM 2003-2006.

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  7. Nossa que linda história :( me emocionei tbm..belo presente sentiremos muita falta

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  8. Obrigada Lu, por compartilhar conosco fatos de tamanha importância na sua vida, nos fazendo sentir mais próximo do Baiano, nosso querido miserável e também, diminuindo nossa dor. Quero continuar acompanhando os próximos capítulos. Muito obrigada! Faccamp ADM 2004-2007

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  9. Obrigada Lu, por compartilhar conosco fatos de tamanha importância na sua vida, nos fazendo sentir mais próximo do Baiano, nosso querido miserável e também, diminuindo nossa dor. Quero continuar acompanhando os próximos capítulos. Muito obrigada! Faccamp ADM 2004-2007

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  10. Ludmila, que lindo esse texto e sua iniciativa de fazer essa homenagem ao seu irmão. Fui colega dele durante anos na Faccamp. No início dividíamos uma carona até Campo Limpo Paulista (eu, ele, Paulo e Maurício), já que morávamos perto. Depois a Faccamp passou a ter uma van e dividíamos apenas a carona até a Barra Funda para pegar essa van. Tenho uma lembrança tão generosa do seu irmão na minha primeira gravidez - quando já com a barriga bem grande ele disse, agora não vamos mais revezar, vou te levar todos os dias. E, foi assim. Rimos muito, trocávamos farpas políticas, mas ele sempre com muito humor, muita inteligência, muito estilo. Tenho inúmeras lembranças deles. De todo esse tempo que lecionei na Faccamp - 12 anos. Ano passado vim para Vitória e não estive perto para dar meu último adeus. Mas vivenciei o início da doença, sempre fiquei muito preocupada e sempre achei, que, forte como era e também generoso (pois tenho certeza que ele não quis contar tudo para a família para não preocupá-la), ele escondia algo. Logo quando fiquei sabendo a notícia do seu falecimento e minha filha me viu chorando contei para ela essa história da minha gravidez, e ela chorou junto comigo. Tenho várias outras lembranças, como do dia em que o carro dele quebrou quando estávamos voltando da Faccamp. Todos os colegas achavam muito engraçado que apenas no meu carro ele não fumava. Ele foi sensacional. Uma pessoa iluminada. Também queria lhe prestar uma homenagem, mas até agora não consegui. Nem me identifiquei, meu nome é Renata Helena Paganoto Moura, fui professora do curso de Direito na Faccamp, por 12 anos e por 12 anos dividi caronas e a companhia dele na van. Deixo aqui um grande abraço para você e sua família.

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  11. Que digno Ludmila,
    Obrigada por dividir conosco suas preciosas lembranças.
    Vladimir Furtado de Brito, nosso eterno Baiano "miserável" conseguiu o respeito e a admiração dos colegas e centenas de alunos.
    Nos deixou o gosto amargo da saudade, mas também doces lembrancas.
    Não era um homem perfeito e justamente por conta das imperfeições tornou-se tão especial, tão único... Uma lenda.
    #gratidão

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  12. Tudo o que vocês viveram foi lindo, as lembranças boas nunca sairão da memória... Um exemplo de irmãos, o que foi contraído, esse amor, essa amizade que vocês tinham, esse laço é muito forte! Esse amor será para sempre! Eterno Vladimir. Miserável 😓

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  13. Nossa.. Chorei de emoção, que história linda, ainda mais pelo coração que o professor tinha, ele ficará para sempre no meu coração. ❤️❤️

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  14. lindo ludmila!Aguardando a,parte 2!Beijos

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  15. ...nossa q texto fantástico Ludmila. O mestre foi para a Faccamp, um homem de peso. Uma lenda. Hj tenho certeza q dos corredores dos prédios, soará os seus " NAO MISERAVEL, TU EH BURRO OU O Q"...sua maneira mais doce de tratar os inúmeros fãs q fizera durante sua história aqui em Campo Limpo. A dor da perda nao pode ser reparada por palavras, pode a cada texto aqui deixado, tras a certeza do quanto ele foi importante para cada um de nós, talvez isso minimize a dor q por hora aflora os entes queridos.
    Fui aluna dele em 2004 e 2005 da turma de administração.
    Por fim ele sempre foi e sempre será um querido amigo.
    Força, fé e q o Senhor Jesus abrande a dor de toda a família.

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  16. Emocionante,linda atitude!Vlad sempre nos surpreendendo.

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  17. História bela e forte, Lud. Impressão profunda.
    Abraço apertado.
    Ana Liése.

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  18. Que poha Ludmila.Muito emocionada.Queria ter convivido com este cara miserável! Que rico!

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  19. Nossa que ótimo poder conhecer esse mestre fora das salas de aula. Obrigada Ludmila por nos deixar mais "íntimos" desse grande homem. Saudades...

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  20. Me emocionei com seus relatos de infância, que lindo.... :(
    Esse miserável vai deixar muitas saudades... Que Deus conforte seu coração Ludmila.

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  21. Obrigado por compartilhar um pouco de sua vida conosco. Com certeza, Vladimir foi uma estrela entre nós!

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Sempre leio todos os comentários e gosto muito de recebê-los!