quinta-feira, 7 de julho de 2016

OS ÚLTIMOS MOMENTOS DE VLAD (texto de Wilson Langeani Filho*)


– Vamo nessa!

Era a deixa usual do anfitrião. Para os frequentadores da residência, apesar de certa rispidez no enunciado, o bota-fora não melindrava ninguém. Pelo contrário. O impagável bom humor e a hospitalidade do dono da casa nos fins de noite memoráveis, nos irreverentes colóquios vespertinos, em papos profundos e destrambelhados, nas divertidas pajelanças, as oportunidades dos flertes regados a um suprimento infindável de drinks e trilhas sonoras poderosas, as tertúlias literárias ... o leque de atividades edificantes compensava, com folga, o desapontamento da súbita e eventual interrupção.


Assim era o jeito cativante, e sutil, de Vladimir. Quando chegava o momento do repouso do guerreiro, que de tudo e todos independia, ele tascava um ponto final na estória. Aos presentes, não raro uma festiva multidão de dez ou mais – considerando a singela metragem dos 40 m2 do apartamento –, restava o caminho da roça, já na expectativa da próxima esbórnia.

Naquela terça-feira, 17 de maio, uma simples dupla dividia o espaço.
Aqui cabe um adendo. Há quase vinte anos, com o objetivo de manter uma atividade física minimamente regular, nadávamos no Clube dos Médicos durante os finais de semana. Por envolver o período matinal, o encorajamento mútuo era estrategicamente importante para conservar a saudável tradição. Dedicados, mas sem extravagâncias, não eram incomuns os perdidos, de lado a lado. “Hoje não, estou cansado”; “tá meio frio”; “sem condições: ressaca braba!”; “sentindo uma dorzinha aqui”; “preguiça ... mas amanhã vamos sem falta”.
Assim foi no sábado anterior. Mas eis que um distraído telefonema vespertino resgatou os planos para o domingão. Senti firmeza no combinado. Pouco depois, porém, Vladimir liga de volta. “Estou cheio de provas para corrigir, não consegui fazer o que tinha programado para hoje, amanhã vai ser difícil, vamos deixar pra lá”. Estranhei um pouco, mas não era nenhuma novidade.

No vai-não-vai dos acertos do final de semana, ele estava bem. Voz boa, animado, contou as novidades do aniversário da nossa querida Nis, comemorado no começo da semana anterior em um barzinho, onde, como sempre, causou. 
festa da Niss

Na segunda-feira, à noitinha, telefona. Durante uma consulta pela manhã o doutor requisitou seu retorno acompanhado de um familiar próximo. Mau sinal. A mãe viria de Salvador. Sua voz estava um pouco engrolada. Aliás, nada soava muito bem. Respirava com certa dificuldade. Fazia uns dias que as náuseas não o deixavam alimentar-se direito. E concluiu: “Meu carro está na oficina, não tenho como sair e estou ficando sem água e papel higiênico”. Na hora me prontifiquei: compras, médico? Ele declinou. “Aguenta até amanhã, sem problemas”.

Pouco depois do almoço, abastecido, chego ao edifício. Logo ao entrar no apartamento fiquei apreensivo. Vacilante, ele se desdobrava entre manter o equilíbrio e varrer do chão da cozinha os cacos de vidro da garrafa de água que acabara de derrubar. Detalhe: descalço. Também, o Conde Vlad tinha múltiplos talentos, mas o manejo da vassoura, definitivamente não estava entre eles.

Assumi a operação e perguntei se havia se alimentado. Ao desabar na poltrona, abatido, respiração curta e difícil, pediu água. “Não consigo comer, volta tudo”. E soltou: “Tô mal, mermão”. Quis levá-lo para o hospital. “Não precisa. Tenho médico na quinta, meu sobrinho chega amanhã e vai comigo.” Permaneci um pouco para fazer companhia, mas não durou. “Wilson, vamo nessa”.

Respeitei sua vontade mas saí preocupado. Em pouco mais de uma hora, me liga. “Não estou conseguindo respirar”. Puta que pariu. “Vou chamar o resgate e tô indo praí”. A distância entre nossas casas é pequena, mas foi um longo trajeto. O porteiro, conhecido, me deixou subir direto. Toquei a campainha, bati, e nada. “Vladimir!”. A resposta veio num sussurro. “Já vou”. Consigo ouvir através da porta ele pelejando, quando meu celular começa a tocar. Ignorei porque finalmente conseguiu abrir e pude entrar. Com o telefone na mão, era ele quem me ligava.

Desta vez fiquei assustado. Seu olhar estava vazio. O esforço drenou sua energia. Foi preciso ampará-lo. Vladimir era grande, pesado, mas conseguimos que se ajeitasse no sofá, bem menor que ele. Apesar do desconforto, o que importava era respirar. Ao se recuperar, quis ir para a cama. Uma meia dúzia de passos novamente esgotou suas forças. O resgate não demorou e o hospital onde ele se tratava aceitou a internação. Tranquei a casa, deixei as chaves na portaria e fui atrás.


Na emergência, ele assistido, pediram que permanecesse: um rosto familiar é um conforto psicológico. Mas passei a sobrar no entra-e-sai de médicos e enfermeiros: a pressão arterial persistia baixa. Fui defenestrado. Logo voltaram a me chamar. “Quer entrar mais um pouco?”

Lembro bem de uma sóbria conversa, como de hábito, que tivemos há um tempo aqui em casa. O tema era a finitude da vida, de onde viemos, coisas assim. Num rompante, já diagnosticado, ele largou: “Sempre fiz tudo o que tive vontade. A gente tem que encarar o que vier. Não tenho medo da morte, não”.

Lá dentro, e na verdade desde que o vi àquele dia, achei-o tranquilo. Me pareceu mesmo que desde à véspera. Quando o médico plantonista debruçou no seu leito, foi pragmático. “Precisamos tomar uma decisão. Como está consciente, isso cabe a você. O seu prognóstico é muito ruim”. Vlad não se alterou. “Você precisa ser entubado. Ficaria mais estável e seria mais sereno, embora sedado. Entretanto, minha recomendação é esperar o máximo possível, enquanto você está consciente”. Não houve hesitação. “Não quero ser entubado”.

Fiz um sinal ao doutor. Com função a hepática comprometida, sua sobrevida era uma incógnita. Nada havia a fazer além de garantir-lhe conforto. Precisava avisar sua família. O médico concordou.

Tinha o número da casa dos pais, em Salvador. Pai falecido, e se a mãe atendesse? Nenhuma mãe merece ouvir isso por telefone, ainda mais de um estranho. Vladimir tinha três irmãs. Tentamos, sem sucesso – ele já um pouco aéreo –, que se recordasse de algum dos números. Lembrei do seu celular que tinha ficado sobre a mesa, em sua casa. E lá fui eu. A caminho, ia imaginando como se participa uma notícia dessas. Para qual iria ligar, se afinal, além dos nomes, nada mais sabia delas, quem teria melhores condições de assimilar uma bomba daquelas?

Ao chegar, uma surpresa: o telefone de um primo me aguardava na portaria. Marco atendeu logo. A prima era sua esposa, Grace. Conversamos sem meias palavras. Sem entender como, soube que a mãe, irmãs e sobrinhos, estavam sabendo de tudo e viriam no dia seguinte. E, para melhorar, os dois já estavam quase no hospital. Quando cheguei, eles falavam com o médico.

Ocorreu que enquanto Vladimir e a mãe acertavam a viagem, por acaso o sobrinho escutou o telefonema. Indagou da avó o motivo, se dispôs a substituí-la e comentou com a mãe. Residente no exterior mas por uma feliz coincidência no Brasil, Ludmila resolveu procurar diretamente o médico do irmão. E ele foi taxativo: Vladimir não tinha mais condições de ficar só. Foi um choque. Embora ciente, a família desconhecia detalhes: Vladimir se mantinha reservado e evasivo quanto à sua condição. Imediatamente começaram a se movimentar e ligaram para pedir à prima, em São Paulo, que fosse à casa dele. “Ele saiu de ambulância com um amigo”, informou o porteiro.

Conhecia Vlad desde a infância. Em Salvador, frequentávamos o mesmo clube. A amizade vingou em São Paulo, já adultos, depois de alguns esbarrões no bar do Ciccio. “Te conheço de algum lugar ...”. Estive com o cara quase a vida toda. Era praticamente um irmão. Permaneci ao seu lado durante todo o tempo àquele dia. Mas quando Grace entrou e passou a confortar o primo, quando ouviu que a mãe, irmãs, sobrinhos, estavam a caminho, pensando nele e torcendo, foi ali que o vi ficar em paz.

Vlad seguiu para a UTI. O reencontramos inconsciente e entubado, mas seu semblante, tranquilo. A médica intensivista, com muito tato, disse que o quadro era bastante grave. “A família chega amanhã”, informamos. “Talvez ele não passe dessa noite”. Não havia mais nada para ser dito. Deixamos os telefones e o pedido para ser avisados, independentemente da hora. Mais alguns instantes junto ao leito e foi tudo. Era por volta de dez horas da noite.

O telefone tocou quatro e meia da manhã. 

*texto escrito por Wilson Langeani Filho, amigo de Vlad, que esteve ao lado dele em muitos momentos de alegria e nesse último. Nós da família, somos extremamente gratos por ele ter estado lá .... 

Segue uma pequena homenagem aos amigos que estiveram ao seu lado desse baiano em São Paulo ....